quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Quando nem tudo era cancerígeno

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS
 
 

Andando pelas ruas da cidade , acessando os sites da internet ou pegando de relance uma notícia na TV, os assuntos são basicamente os mesmos , além das tradicionais amenidades e escândalos políticos: pão sem glúten, café sem cafeína, cerveja sem álcool, cigarro eletrônico, beijo sem romance , sexo sem amor, bate papo sem contato visual.
 
Quando menina, uma vez, ao rejeitar um bom punhado de queijo parmesão sobre a macarronada, uma tia me disse que macarrão sem queijo era como namoro sem beijo.
 
Sinto saudade do tempo em que a gente comia fritura sem culpa e o pessoal podia fumar o seu cigarro sem se sentir um criminoso. Ok.Ok.Ok. Aquele lance de poder fumar em restaurante era muito chato. Muito chato mesmo.  Mas hoje em dia nem mesmo na rua os fumantes ficam em paz. Sempre tem alguém fazendo cara feia , fingindo tosse, criando todo um auê porque o outro optou por um estilo de vida não saudável.
 
Mas as pessoas se esquecem que a vida é cancerígena. Sim, a vida é cancerígena com seus desencontros , decepções e auto enganos. Com ou sem fumo, com ou sem gordura trans, com ou sem glúten, todos iremos para o mesmo lugar: para o cemitério. A bonitinha fitness vai ter as carnes apodrecidas como a gordinha que come a sua coxinha feliz da vida. Ok.Ok.Ok mais uma vez. Não defendo que a gente deva entupir as veias com gordura , jogando o colesterol na lua. Não defendo o hábito de fumar nem de encher a cara. Também não tenho nada contra uma boa salada e uma caminhada pela manhã.
 
O drama está no radicalismo, na intolerância , na crença ingênua de que seremos salvos pelo alface , pela academia , pelo pão sem glúten. Se uma vida saudável evita doenças graves e pode garantir mais alguns anos de existência, por outro lado, uma vida saudável fisicamente pode ser chata , mas muito chata mesmo para algumas pessoas...ou para muitas....ou para a maioria. O problema é que quase todo mundo têm medo de admitir que a gente era mais feliz quando podia comer o nosso pão com manteiga em paz, o nosso cafezinho com açúcar.
 
O problema é que o conhecimento que deveria nos libertar, está nos transformando em paranoicos. Pior do que isso:  em gente chata , sem prazer. Sim, não há nada mais broxante do que gente chata.
 
Sim, sinto saudade do tempo em que a gente não falava de câncer e colesterol e triglicérides o tempo todo. Sinto saudade do tempo em que comida era comida e não medicamento ou veneno. Sinto saudade da ignorância feliz, quando a gente não sabia que tudo era cancerígeno. Que tudo entope as veias , que tudo cria algum tipo de desgraça para o nosso organismo.
 
Sinto saudade do tempo em que a gente sonhava em se apaixonar para valer , ficar que nem bobo, de quatro, idealizando um beijo, pensando na pessoa amada antes de dormir para poder sonhar com ela.
 
Sinto saudade do tempo em que namorar por amor não era considerado cafona e os pais de família não eram vistos como alcoólatras por tomarem uma cervejinha juntamente com o feijão gordo.
 
Sinto saudade do cheiro de comida caseira , do bolo assando. Dos diários cheios de confidências de amor louco. Da molecada se reunindo no shopping para ver um filme e depois comer um sanduba.  Do tempo em que ver a selfie da vizinha periguete não era o melhor passatempo. Em que as pessoas se reuniam para ver ao Super Cine ou ao último capítulo de uma novela famosa. Acho triste reduzir os filmes e a vida à pequena tela do smartphone...
 
 

 
 














Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.









sábado, 4 de fevereiro de 2017

Os prazeres da vida adulta

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS
 
 
Uma das alegrias da vida adulta é ter seus próprios sapatos de salto. Não que eu seja muito chegada a eles. Prefiro ainda andar por aí com minhas botinas surradas. Mas de vez em quando gosto de brincar de menina elegante e botar meus saltos pretos , não muito altos ( não daria conta deles). Meus saltos pretos envernizados bem clássicos com cara de quem diz "Dei certo na vida".
 
Quando bem criança não podia ver uma mulher usando saltos. Pedia-os emprestados. Uma vez , quase matei minha mãe de vergonha, quando fiquei pedindo os sapatos da esposa do novelista Silvio de Abreu , que morava no mesmo prédio que a minha família. 

Normalmente usava-os da minha mãe. Não só os saltos , mas as bolsas , os óculos escuros , o batom...e maiorzinha punha numa bolsa velha mas distinta , destinada à brincar , um pequeno lápis como se fosse um cigarro e fingia que o guaraná era uísque. Podia me entupir de toxinas sem fazer mal algum.
 
De uísque eu não gosto. Mas aprecio um vinho. E hoje , posso ir andando até o mercado, com meus saltos pretos não muito altos , meu vestidinho sem costas comprar uma garrafa de vinho branco. Me movimento despreocupadamente. Mulher feita. Apesar do andar naturalmente deselegante agravado pela inabilidade de usar saltos , caminho como a mulher que gostaria de ser. Ou que poderia. Me sinto orgulhosa por poder comprar um vinho de 40 reais. Luxo para alguém que se dedica à profissão mais desimportante da sociedade. Aperto a garrafa do chardonnay chileno contra o peito ardente , imaginando-o bem gelado , dentro de uma taça sob os olhares mornos e suculentos daquele que amo.
 
Sim, chardonnay com provolone fica delicioso e pouco me importa se dizem que harmoniza ou não. Mas chardonnay com olhar de romance e risada compartilhada com quem nos entende fica bem melhor.
 
Sim, saio do mercado rumo à rua com um semblante sério. Mas por dentro estou sorrindo. Sorriso de menina travessa. Hoje , posso tomar vinho de verdade. Não preciso fingir que refrigerante é uísque nem pegar os sapatos da minha mãe.
 
Hoje , não preciso mais escrever numa lousinha , chacoalhando o braço para fazer barulho com as pulseiras maternas. Não preciso mais lecionar para as minhas bonecas enfileiradas no chão. Hoje , posso falar sacudindo a cabeça para agitar meus próprios brincos. Posso escrever numa lousa gigante para alunos de verdade. E hoje que posso, nem escrevo tanto assim... e quando os vejo anotando o que eu digo , sinto um frisson danado. "Nossa! Eles são muito mais legais do que as minhas bonecas!".

Uma vez, sem querer, com a melhor das boas intenções , destruí uma história em quadrinhos feita por meu irmão. Coloquei um sinal de certo em cada quadro. Não entendi quando ele ficou puto comigo. Ele havia tirado nota máxima pela minha avaliação! Ainda hoje , sinto muito prazer , fazendo sinais de certo nas provas dos alunos. Os sinais de errado saem menores , mais tímidos , quase pedindo desculpas. E quando um estudante olha admirado para a prova e diz que vai mostrar o seu dez para a mãe ficar orgulhosa , eu penso: "Mas é uma prova elaborada por mim. Não é possível que eles estejam a considerando um documento importante?".

E sobre os homens... as brigas com os meninos hoje em dia são muito mais gostosas. Na infância , a gente brigava e ponto final. Hoje , as brigas terminam com reticências , pontos de exclamação. Ás vezes , com três ou quatro exclamações.  Na infância os garotos  nos empurram na aula de Educação Física. Na fase adulta, os meninos nos empurram na direção da cama. E não precisa de professora para separar a briga não. A gente se resolve sozinho.
 
 
Sim, se engana , se engana muito quem diz que não existem deliciosos prazeres na vida adulta...
 
 

 



 
 














Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.









sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Como se faz uma garota desbocada

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS

São necessários muitos tipos de garota para se formar uma garota desbocada. Sim, uma garota desbocada não é feita como bolo de pacotinho. Não basta misturar o preparado ao leite , dar uma batidinha de leve e botar para assar. 

Uma garota desbocada está mais para bolo feito por confeiteira, daquelas que preparam a massa fresquinha , o recheio cheio de mil coisinhas deliciosas, daquelas que usam pasta americana , confeitos e escreve o teu nome com glacê e faz uma carinha feliz com raspas de chocolate. 

Uma garota desbocada é feita com ingredientes variados e finos, embora o resultado soe bem espalhafatoso , debochado e cruel. 

Tudo começa com uma boa dose de romantismo do tipo mais ingênuo. É , não basta ser romântica meio termo light que curte ver filminho meloso com finalzinho feliz. Precisa ser romântica do tipo hardcore, que assiste a filmes trágicos, que lê duas vezes romances torturantes só para se certificar de que o coração vai ficar todo estilhaçado mesmo,  que escuta música triste  só para chorar e se sentir viva. 

Pegue este tipo de garota e salve-a dela mesma no alto de uma torre de cristal, toda ornamentada com carinhos embalados em papel celofane cor-de-rosa e beijos calorosos antes de dormir sabor chocolate com menta.  Quando ela estiver crescida , deixe a porta aberta rumo ao mundo. Tudo pronto? Ainda não. 

É preciso esperar por trocentas e sete decepções para que ela finalmente fique no ponto de ser apreciada sem moderação, com calda de chocolate por cima e uns jatos de chantilly. Ok.Ok.Ok. As mais espertas precisam de duzentas e setenta e sete decepções apenas. 

Se estiver de dieta , pode apreciá-la com raspas de limão. Fica ótimo também. 

Garotas desbocadas são como a cor branca : a fusão de todas as outras garotas. A iludida, a apaixonada,  a decepcionada, a  ferida , a decepcionada e ferida mais uma vez , a iludida que pensa que já aprendeu. A sarcástica feroz. A apaixonada mais uma vez. A indignada. A apaixonada outra vez. A sarcástica que tira sarro dela mesma.
 
Não, garotas desbocadas nunca aprendem. Porque lá no fundo , elas não querem aprender. Elas sentem que aprendendo vai ficar tudo muito seco, estilo bolo chato, sem cobertura nem recheio. 

Garotas desbocadas gostam de comer aquele pedação de bolo ainda quente. Se der dor de barriga , a gente geme , grita , chora e choraminga depois. A gente acusa o mundo cruel. As mais reflexivas , acusam a elas mesmas e demonstram um arrependimento que não sentem.

Sim, garotas desbocadas cometem sempre os mesmos erros. Falta de inteligência? Memória curta? Não. Não sabemos viver de outro jeito. E saímos por aí, ás vezes rindo, às vezes chorando, cambaleantes entre o mais rasgado sarcasmo e a mais visceral passionalidade. A vida para nós palpita nos extremos.












Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.