segunda-feira, 30 de maio de 2016

Estação Liberdade

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS
Costumamos nos encontrar na estação Liberdade. Entre as feirinhas típicas do bairro, nos perdemos  na comodidade de um ponto em comum. Sim, é tranquilo para nós dois desembarcar na estação Liberdade. E da estação ao restaurante basta alguns passos. Basta um pouco de cuidado para não esbarrar em nenhuma das bancas da feira.
Dentro de qualquer um daqueles restaurantes que servem comida fartamente, nos escondemos do mundo. Nos escondemos de tudo que nos espera do lado de fora, quando desembarcarmos em outra estação.
Na Praça liberdade somos apenas nós. Você e eu compactados como o arroz e o salmão no niguiri.  Não somos filhos de ninguém. Não temos família nem endereço nem nome. Somos apenas nós. Você e eu nos buscando desajeitadamente como o macarrão oriental comido com rachi.
Na Praça Liberdade não temos pressa. Passamos por entre as bancas. Paramos na de jornal. Olhamos para o fluxo que entra e sai como se aquilo não nos dissesse respeito. Como se nunca fosse preciso pegar o trem e partir para longe.
Na estação Liberdade, a vida tem gosto de molho soyo. Sim, a vida tem sabor ,  a gente a devora com vontade. Depois dá uma sede danada. A vida tem um gosto bem particular: euforia , romantismo, liberdade. Só nos damos conta de que tinha gosto de saudade depois...quando já não estamos mais na estação.



Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 















sexta-feira, 27 de maio de 2016

É preciso incomodar-versão sem cortes

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS
 
Adoro traduzir para o linguajar da Garota desbocada alguns artigos que escrevo para a Obvious. Estilo filme de terror ou pornô sem cortes, versão do diretor...ulalá RS  No caso, da diretora.
 
Mas não nego que sinto certo prazer em traduzir o que penso em palavras bonitinhas, botar fitinhas cor-de-rosa em cabeleiras rebeldes, fazer um make em caretas, jogar um pouco de groselha para colorir e adoçar a baba ácida.
 
Escrevi um texto intitulado "É preciso incomodar". Não que o texto seja propriamente meiguinho. Dou boas bofetadas. Mas, aqui posso dizer com todas as letras o que realmente me passa pela cabeça e o que eu rumino enquanto seleciono palavras bem comportadas, de pernas cruzadas, sem fios puxados na meia calça.
 
Aqui me sento confortavelmente. Calças largas , macias, dançando um pouco na cintura. Botinas. Um sorriso matreiro.
 
Sim, é preciso incomodar. É preciso dar um basta para quem só enche o saco. Para quem se aproxima simplesmente para tomar, pegar , sugar , usurpar. É preciso saber e dizer não para quem só nos enxerga quando é para nos atropelar.
 
Sim, é preciso incomodar e incomodar-se com situações ambíguas, mal resolvidas, com palavras engasgadas no meio da garganta com gosto de vinho azedo ou cerveja quente.
 
Sim, é preciso incomodar a modorra do cotidiano. A mesmice dos dias. É preciso dar uma bagunçada nos scripts, criar falas novas, uns bons cacos, fazer algum gesto de improviso.
 
É preciso incomodar-se quando não incomodamos mais ninguém...nem a nós mesmos. É preciso incomodar os hábitos que não nos fazem mais felizes. Deixá-los de cabelo em pé.
 
É preciso levantar o dedo do meio para problemas menores que tentam se tornar vedetes no nosso dia a dia. Sim, é preciso levantar-se da cadeira e deixá-los rebolando sozinhos sob a vulgar luz de seus teatros baratos.
 
É preciso incomodar-se quando mais nada nos incomodar. Aí, é preciso nos pegar de jeito, nos sacudir pelos ombros, chacoalhar o corpo inteiro, dar uns tapinhas nas bochechas para acordarmos para qualquer coisa. Para acordarmos para nós mesmos.
 
Sim, é preciso incomodar-se com a vida que vai escorregando por entre os dedos...é preciso esconder o rosto entre os braços e chorar e chorar... até recuperar as forças e incomodar-se...incomodar-se muito, a ponto de afiar as garras para lutar.
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious. Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Garota desbocada????????

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS

 
Ás vezes sinto saudade da garota desbocada. Da garota desbocada no seu estado mais brutal e mais líquido ao mesmo tempo. 
 
Às vezes sinto saudade daquela mulher regida por Mercúrio, camaleoa, se desfazendo em mil cores , transbordando caoticamente como uma boa geminiana que nem sabe se quer alguma coisa.
 
Às vezes sinto saudade daquela mulher que sai na chuva sem medo de ficar doente pois apesar do sorriso sexy , está no fundo do poço. Está pouco se lixando se a água corre para cima ou para baixo, pois independente do fluxo das marés, ela sabe que seu destino é se afogar num mar de má sorte.
 
Às vezes sinto saudade da garota desbocada que debocha de tudo aquilo que ela mais quer tocar e não pode. Da garota desbocada que precisa derrubar tudo aquilo que a faria feliz, mas que lhe arrancaram brutalmente das mãos , sem dó nem piedade. Sem olhar para trás. Sem um olhar de compaixão.
 
O sofrimento tem lá os seus encantos e vicia. O sofrimento deixa lá suas marcas na alma , uma espécie de programação sinistra. Me movo desajeitadamente sob o som desta música alegre. Deste gosto prosaico de cerveja e aconchego. Deste gosto aconchegante das coisas prosaicas e essenciais da vida.
 
A chuva me assusta. Meus excessos me deixam com dor na consciência. Quando estamos felizes , nos sentimos em débito com a vida.
 
Lembro de mim, andando na chuva, os pingos grossos batendo em meu rosto, os ombros nus , projetados para um futuro inexistente.  Sim, existe um charme em não ter nada a perder...um senso de liberdade e irreverência que me rasgam por dentro enquanto me toca e me esbofeteia com mil mãos insanas.
 
Sorrio para mim mesma. Para tudo que desprezei. Para tudo que desdenhei. Sorrio para esta mulher que me olha pela fresta da alma, invejando o meu atual sorriso plácido. Ela tenta me arrastar para o seu caos solitário. Ela me olha fixo tentando me hipnotizar e não tiro os olhos de seu batom vermelho.
 
Sorrio mais uma vez antes de fechar a porta em sua cara.
 
 
 
 

Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious. Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Sobre o amor...mais uma vez, sobre o amor

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS

O amor é quase uma ideia fixa para mim. Mentira! Não é quase...é ideia fixa para valer , no duro. 

Sobre a tecitura do amor , vou puxando os outros fios da vida , articulando-os, cruzando-os, cortando-os. 

Sobre a tecitura do amor , choro poesia. Sobre a tecitura do amor enceno a minha própria dor , um sentimento de solidão que me come a alma. Sobre a tecitura do amor , faço o meu gran finale , um resquício de lágrima brilhando debaixo da pálpebra. Um sorriso sutil e meio amargo nos lábios de quem tudo já disse e calou. 

Sobre a tecitura do amor , reinvento palavras, dou cor e sabor a elas. Recrio sensações. Faço o banal soar espetacular. Faço o banal virar dia de festa , com o gosto pegajoso do brigadeiro derretendo na boca. Gosto de meninice. Gosto de tempo perdido. De tempo vivido. 

Mas, talvez, eu tenha passado a vida a imaginar amores, a escrevê-los em minha mente de poeta, declamando-os para mim mesma no escuro do meu coração triste. Do meu coração de mulher que só sabe amar: minha maior força e minha condenação. 

Mas, talvez, eu tenha amado sozinha ou pensado amar...talvez , tudo não tenha passado de uma imaginação, de uma ilusão de ótica da alma, fruto da minha vontade desesperada de ter a minha pele alinhavada ao amor, de me fundir a ele numa união visceral e definitiva.  

Quando olho nos seus olhos, vejo que nada vi sobre o amor. Quando escuto a sua voz, percebo que nada ouvi sobre o amor. Quando sinto o calor da sua respiração, o seu rosto se aproximando do meu, fecho os olhos da alma e percebo que nem cheguei perto do amor. Que apenas o vi de muito longe por detrás de uma parede de vidro que me separou do mundo.  Que dele tive apenas um vago vislumbre colorido por minha alma de poeta , por minha alma de mulher que não distingue entre viver e amar. 

Quando sinto seus braços ao redor do meu corpo cansado,  tenho a mim mesma. Quando seus lábios buscam pelos meus no caos do meu coração, me pertenço, me encontro, me perco dentro dos labirintos poéticos do seu amor que impregna na alma como brigadeiro. Sorrio para mim mesma. Os versos de nossos poemas íntimos se juntam numa estranha sonoridade.  Muitos ouvidos só captam um ruído. Sorri comigo. 

Sim, mais uma vez,  gosto de meninice. Gosto de tempo resgatado, vivido até o torpor da alma. Até o desfalecer do passado, caindo como cartas de um castelinho trágico. 


Queria que o tempo parasse. Queria agarrar os ponteiros do mundo para que nunca deixasse de ser presente. Para que eu nunca deixasse de ser o seu presente. Queria contrariar as leis da natureza para nunca mais precisar te dizer adeus. Para nunca mais vê-lo se afastando na multidão. Para nunca deixar de sermos nós e não apenas você e eu. 













Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 



terça-feira, 24 de maio de 2016

Se você tem apetite , nem tudo está perdido

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS

Sim, se você tem apetite , nem tudo está perdido. E quando falo apetite , não me refiro exclusivamente à comida. Me refiro à vida. Tudo bem. Tudo bem. Comida também entra na lista.

Se você fecha os olhos para sentir melhor o gosto de qualquer coisa se desmanchando na boca ou simplesmente fica com os olhos brilhando por ver aquele prato delicioso à sua frente, nem tudo está perdido.

Se você sonha com um copo de suco de maracujá geladíssimo enquanto corre na esteira e sente a boca e a garganta secas, nem tudo está perdido.  Se sonhar com suco de caju , acerola ou carambola, melhor ainda. Quanto mais sofisticado e peculiar o sonho, mais pulsante você está e mais você pode dizer a si mesmo: "Nem tudo está perdido!"
 
Se você sonha  com aquela manhã de domingo em que você poderá dormir mais, nem tudo está perdido. E se você esboçar alguma preferência entre se enroscar num cobertor felpudo ou num edredom macio, realmente nada está perdido.
 
Se você sonha em fazer um programa romântico mesmo que não tenha namorado , nem tudo está perdido. Se você fica babando para fotos de lugares paradisíacos que encontra em sites , nem tudo está perdido, por mais que você esteja desanimado, cansado, precisando colocar o sono em dia.
 
Se você sonha com qualquer coisa , mesmo que não tenho disposição ou disponibilidade para realizá-la no momento, nem tudo está perdido.
 
Sonhos são como damas da noite que perfumam a alma no raiar da madrugada , impregnando a existência com seu perfume peculiar e marcante.
 
Sonhos são como flores do mato que brotam e crescem à nossa revelia , sem os nosso cuidado. Crescem desordenados, fortes e espontâneos.
 
Sim, se você tiver apetite , você terá sonhos. E poderá dizer a si mesmo que nem tudo está perdido.





 



Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 

domingo, 22 de maio de 2016

Sobre confidências e imprudências

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS
 

 
 

Vendo um post no Facebook, senti vontade de escrever este texto no final do final de semana. Um bom horário para escrever contra a rotina , pois final de domingo evoca cheiro de mesmice. Obrigação. Longa jornada pela frente.

No post , a personagem feminina dizia à masculina que não queria viver como uma formiga , com o piloto automático sempre ligado. Ela não queria se restringir à responder perguntas como "Débito ou crédito".
 
 Ela queria olhar e ser olhada pelo personagem masculino. Enfim, ela queria quebrar o automatismo, as perguntas burocráticas,  os "sinto muito" ou  os "desculpe" protocolares que falamos quando esbarramos com um estranho na rua.
 
Não há nada mais difícil do que tirar a vida do piloto automático. Ao mesmo tempo, não há nada mais lindo. 
 
Me lembro de uma vez que saí correndo pela rua segurando na mão de uma aluna. Ela é completamente anti atlética como eu, o que tornou o gesto mais engraçado.
 
Tinha passado muito tempo triste e de repente aquele gesto explodiu naturalmente , como uma flor do mato, como uma força da natureza. Saímos correndo e rindo. Ela extremamente jovem e cheia de vida . Eu com meu vestido estampado e botas surradas. Cheia de vida também.
 
O cineasta inglês David Lean disse que um grande filme era um filme normal com duas ou três grandes cenas. Acho que a vida também é assim. Algo normal com alguns momentos espetaculares e outros pavorosos.
 
Quem consegue quebrar mais vezes o piloto automático e dizer algo inusitado, tomar uma cerveja fora de hora ,  abrir o coração mesmo contra as probabilidades do bom senso tem chances maiores de viver os tais momentos espetaculares ou pavorosos. Tem mais chance de viver uma vida que extrapola as barreiras do normal, do banal, do mais ou menos, do nem ruim nem bom, do não cheira nem fede , da média 5.
 
Como diria Sartre , na vida precisamos escolher entre o ruim e o pior. Sim, eu fico com o infortúnio daqueles que ousam interceptar estranhos na rua , vomitar sentimentos de amor, quase desfalecer por ele. Eu fico com minhas botas surradas e meu riso solto enquanto agarro a mão de alguém que eu queira bem. Eu fico com o calor das confidências imprudentes de quem me olha nos olha sem medo de mostrar quem é. Eu fico com o sussurro rouco de quem como eu prefere sofrer a não viver.
 
 
 
 
 
 
 

Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 













sexta-feira, 20 de maio de 2016

Calcinhas bonitas para uma moça solitária

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS
 
Um dia desses estava me lembrando que no tempo que recebi um salário melhor , foi justamente a época em que senti mais fome. Fome de tudo: de comida mesmo. De afeto. De boas conversas.
 
Neste tempo, uma vez, fui falar de um livro que estava lendo e olharam para mim como se eu estivesse drogada.  E olhem que eu não estava citando Proust ou Joyce. Eu estava falando de Richard Yates e do seu romance "Revolutionary road". Um romance bastante profundo. Mas de fácil intelecção. Se bem, que parando para pensar, "Revolutionary road" devia ser um dos últimos livros para se comentar naquele ambiente cheio de preocupações relevantes como massagens redutoras de medidas e sapatos da moda.
 
"Revolutionary road" é justamente sobre esta vidinha de merda que a maioria das pessoas aceita numa boa como se fosse o supra sumo, a última Coca Zero gelada no deserto, acompanhada por duas rodelinhas de limão siciliano. Fico entre o choro sincero e um riso de escárnio.
 
Sim, foi um tempo estranho. Eu tinha dinheiro para comer em restaurantes legais , mas não havia companhia para fazer isso. Eu tinha dinheiro para comprar lingeries bonitas e comprava...mas nem sexo eu fazia. Não tinha ninguém para olhar as minhas calcinhas...se bem que homens normalmente não as olham. Passamos cinco minutos para escolher a calcinha perfeita e a pobre coitada mal tem tempo de dizer um olá para o sujeito.  Já sai voando como embrulho de presente para criança.
 
Sim, foi um tempo estranho. Tinha um cargo com nome pomposo, mas nunca me senti tão operária comendo meu pão com queijo e presunto frio na copa do escritório. Havia quem me considerasse fresca , mas não curto arroz com baratinha do mato nem feijão com aspecto de barro.  Sim, preferia o pão com queijo e presunto que trazia de casa: simples, monótono, mas limpo e digno. Almocei um lanche assim por uns cinco meses.
 
Sim, foi um tempo estranho. Foi quando percebi que a estranha era eu. Que aquele mundo de amabilidades e gentilezas , de conversas densas sobre arte e sobre a vida, aquele mundo de pessoas intensas e interessantes não era o mundo de verdade. Era o meu mundo. Era o mundo o qual estava habituada. Era de onde tinha vindo.
 
No mundo real, ser gentil era ser falso. E querer comer comida limpa era luxo. E gostar de livros é papo de louco.  E andar de sapatos baixos , o fim da picada.
 
Sim, quanto mais mergulhamos dentro de nós e quanto mais bebemos do vinho do conhecimento e quanto mais nos enredamos nas teias das delicadezas , mais loucos e bizarros começamos a aparentar para o mundo brutalizado.
 
Estes meses de fome , de solidão, mastigando meu sanduíche sozinha, com lágrimas querendo se precipitar,  realizando tarefas que não faziam sentido , sendo cada vez mais desprezada quanto mais tentava agradar, talvez tenham sido os meses mais didáticos de toda a minha vida. Foi um curso intensivo de realidade. Me adequei? Muito pelo contrário. Me desadequei ainda mais. Me desadequei com conhecimento de causa.
 
Se os cursos de arte com seus professores e colegas instigantes me fizeram ver o que eu queria ou imaginava querer, este tempo me fez ver tudo aquilo que eu não queria.  Sim, de certa forma , eu não me conhecia antes desta temporada friorenta. Eu não tinha a mim mesma.  E hoje , diante da menor das delicadezas , diante do menor gesto que exala calor e carinho, sinto-me profundamente grata , pois agora sei que este belo mundo colorido, cheirando a canela e a outras especiarias é um milagre que brota de um descuido deste mundo de pedra.
 
 
 
 




Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 








quinta-feira, 19 de maio de 2016

Romance tem gosto de chocolate quente com rum

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS
 
Me deu vontade de tomar uma caneca cheia de chocolate quente com rum. Uma maneira de conciliar o aconchego adocicado da meninice da vida com a pegada forte da fase adulta.
 
Uma maneira de me tornar mulher madura e resoluta , sem deixar de ser uma menina de olhos brilhantes acreditando nas mais ingênuas tolices que desconstruo por meio do meu discurso. Apenas por meio do meu discurso...
 
Uma maneira de aquecer o corpo e a alma, entorpecer os sentidos e ao mesmo tempo animá-los. 
 
Uma maneira de ir e ficar ao mesmo tempo. De ser e não ser. De me deixar levar para caminhos variados , embriagada e arrastada por sensações múltiplas, variadas que vão me tocando com mil mãos macias , olhando em meus olhos , sorvendo meus segredos só de aspirar o meu perfume.
 
Aquele perfume cansado, abandonado na nuca , atrás das orelhas, nos pulsos que roçam o teu pescoço quando te abraço, quando te enlaço e te arrasto para o meu mundo colorido.
 
Fecho os olhos e sinto o gosto fumegante do seu beijo entrar por minha alma que insiste em não crescer.
 
Abro a minha alma e sinto todas as portas do passado se fechando atrás de mim.  Batendo uma a uma numa melodia estridente com gosto de rum vencido nos lábios amargos.
 
Abro a minha alma e tudo fica com gosto quente de chocolate , com gosto doce de euforia.  Com gosto sussurrado de por que não? Pois não. Pois bem. Sorrio para mim mesma.





Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 


segunda-feira, 16 de maio de 2016

Um banho quente num dia de chuva

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS

Talvez, para mim, tomar um banho quente num dia de chuva, num daqueles dias que o mundo parece desabar do lado de fora da janela de casa, é um dos prazeres mais prosaicos. 

Prosaico como comer um pão com ovo. Prosaico como comer churrasquinho de quermesse, dormir até mais tarde num domingo ocioso, se lambuzar com um picolé ou uma farta fatia de melancia num dia quente.

Prosaico como o primeiro gole de café pela manhã. Como o primeiro gole de cerveja quando se está com sede. Como o primeiro gole de champanhe quando se celebra , olhos nos olhos.

Prosaico como cantar parabéns, partir o bolo, dizer que não precisava se preocupar com presente enquanto rasga-se o embrulho furiosamente.

Prosaico como as repetitivas juras de amor . Como os gestos meio pegajosos de quem ama.

Sim, um banho quente num dia de chuva me faz sentir certo aconchego, certa alegria incerta. Obviamente , quando lembro que milhares de pessoas moram e dormem nas ruas em noites frias o encanto evapora como frasco de álcool  aberto. 

A filosofia engole a poesia prosaica da vida. O conhecimento consciente engole o prazer sensorial e comezinho. A vida engole a fantasia. 





Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 

























sábado, 14 de maio de 2016

Sobre comida fria e amores quentes

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS
 
Hoje, uma pessoa muito especial, enviou-me pelo WhatsApp uma frase interessante: sobre um homem que comparava a mulher amada aos filmes do Tarantino. Ele não entendia bem o enredo, mas ficava vidrado com a intensidade, pois ela era violentamente encantadora.
 
 
Ao ler esta frase com o meu sorriso assimétrico pouco confiável, pensei no punhado de arroz branco e frio que comi ontem à noite antes de dormir.
 
 
Sim, o arroz que mata a minha fome quando chego em casa tarde , nas noites de sexta-feira, significa muito mais para mim do que um mero alimento.
 
Ele é praticamente o meu cúmplice. Coloco-o na boca , cheia de apetite e saudade dos momentos anteriores. Ele me faz companhia e me aconchega quando estou novamente sozinha, perdida em pensamentos. 
 
 
Não o esquento. Faz parte do ritual profano comê-lo frio, disposto num pratinho de sobremesa. O arroz aquecido sobre um prato grande seria formal demais...arroz frio, comido em pé, a meio caminho da ansiedade e da euforia tem gosto de improviso, tem gosto de imprevisto. Tem gosto de vida que se desenrola naturalmente.
 
Nada de castelos projetados no futuro. Nada de escombros do passado. Apenas o seu olhar cúmplice. Às vezes , meio atrevido. Outras vezes, meio acanhado. Apenas o seu sorriso que receia se expandir. Vejo pouco dos seus dentes quando sorri, diferentemente do meu que se entrega despudoradamente. 
 
Apenas a cerveja compartilhada nas noites quentes. E nas frias também. Apenas o frisson do encontro da sua pele na minha alma de poeta. Apenas o frisson do encontro do seu coração filosófico e inquieto com o meus olhos que te cozinham em fogo lento.
 
Não existe ontem. Não existe amanhã. Apenas uma sequência de hojes.
 
Não, não é preciso aquecer o arroz. Não, não é preciso por a mesa. É preciso saborear os momentos como eles são.  No meio da cozinha, numa mesa de bar na calçada, num canto qualquer da plataforma do metrô.  É preciso viver entre um trem e outro até onde o acaso nos levar.
 
 
 
 
 
 
 



Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 






 
















terça-feira, 10 de maio de 2016

Sim, a vida é um filme!

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS
 
Sim, a vida é um filme! Ou poderia ser...ou é quase tão idêntica a um filme, simulacro praticamente perfeito, que nem faz muita diferença assistir à vida por uma tela ou viver uma ficção pelos becos da cidade.
 
Quando saio correndo pelas ruas, de mãos dadas, sinto-me Eva Green em "Os sonhadores", imitando Julie de Truffaut.
 
Quando me despeço entre beijos rápidos e quentes na estação do metrô, sinto-me a mulher de "Um homem, uma mulher" ou qualquer moça da Nouvelle-Vague.
 
Quando discuto a relação entre os lençóis...ou sem eles...penso em "Acossado". Penso mais uma vez na Nouvelle-Vague quando racionalizo o amor, sendo que na verdade quero atirar coisas contra a parede como Marina de "Atame!"
 
Quando a noite promete, sinto-me qualquer personagem insana de Almodóvar e quando contradigo meu senso de liberdade com uma roupa elegante e um jeito blasé, pertenço totalmente ao universo de Buñuel.
 
Quando me canso de ser bem comportada, poderia muito bem ser Isabella Rosselini em "Um toque de infidelidade" correndo até o lado oposto do trem e das convenções. Quando não quero entender os limites razoáveis do desejo, sou Isabella Rosselini novamente...só que em Veludo azul.
 
Quando o amor ao cinema em si fala mais alto, vejo a sequência de beijos de "Cinema Paradiso".  Quando o amor ganha nuances muito pasteurizadas, penso em qualquer comédia romântica com certo constrangimento e uma incômoda alegria.
 
Quando digo que não tenho sorte no amor, com ares dramáticos e levemente envelhecidos, reverto-me em Loreta de "O feitiço da lua".
 
Quando me entrego à vida cheia de displicência , posso ser qualquer diva.
 
Às vezes , a vida não faz o menor sentido e mergulhamos na mais profunda reflexão e ostracismo como num filme de Bergman ou de Tartovski.
 
Falando em Bergman, quando quero gritar , mas não tenho voz ou não tenho saco para me fazer ouvir por aqueles que não querem me ouvir ou até querem, mas temem, me fundo ao vermelho estridente de "Gritos e sussurros" ou ao nojo de "O silêncio".
 
Quando a vida de repente floresce dos escombros cinzas, sinto-me saltitar como a desafortunada Cabíria de Fellini.
 
 
Sim, a vida é um filme! Basta um pouco de abstração para flertar com os enquadramentos, com os movimentos de câmera, com a trilha sonora que insiste em tocar , dando alguma dignidade à coreografia da vida.
 
 



Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 






 












segunda-feira, 9 de maio de 2016

Paixão é scargot...amor é arroz com feijão

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS

Adoro relacionar tudo com comida. Já devo ter escrito algo do gênero em algum dos meus "testículos" RS Sim, relaciono quase tudo com comida porque sou comilona. Adoro comer. Relaciono quase tudo com comida porque vejo estas conexões de fato...

Sim, paixão está mais para scargots,  steak tartar, comida conceito servida no meio de um prato gigantesco , todo enfeitado com flores comestíveis e castanhas picadinhas.  Paixão é champanhe gelado, servido numa taça bonita, numa mesinha de canto de um restaurante iluminado com arandelas e delicadas velinhas.  Paixão é creme brûlée. É crepe de frutas vermelhas salpicado por uma geleia exótica e saboreado com duas colheres, em porções delicadas, olhos nos olhos, à luz de velas deixando tudo mais bonito.

Amor está mais para arroz com feijão. Arroz com feijão bem feito. Bem temperado, pedacinhos de bacon bem fritos boiando naquele caldo espesso, quente. Nada elegante. Reconfortante. Chegar da rua morrendo de fome e cansaço e encontrar um bom feijão fumegante sobre um arroz que acabou de sair do fogo, levemente papa, pode ser a melhor e mais prosaica das bênçãos. 

Amor está mais para bife acebolado, farofinha caseira, uma boa macarronada com molho de carne, maionese. Amor tem cheiro de café recém-coado, pão na chapa, pão fresco com manteiga, gelatina de morango, brigadeiro de colher, bolinho de chuva.  O amor não é glamoroso, mas é essencial. É denso. Vital.  

A paixão pede talheres de prata , garçom servindo à francesa.  Amor pode se satisfazer muito bem  com um P.F. A paixão tem gosto de especiarias, molhos sofisticados, carnes raras. O amor tem gosto de picadinho com molho de pimenta, batatas fritas ou purê de batatas.  A paixão está mais para purê de maçãs com uma caça.

A paixão é café expresso servido numa xícara branca. O amor pode ser servido numa xícara de qualquer cor, desbeiçada. Pode ser servido no copo de requeijão.

A paixão pede regalias depois da refeição. O amor lava os pratos juntos. O amor não é glamoroso, mas é essencial. É denso. Vital.  O amor é o que é. 


Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas. 






 











terça-feira, 3 de maio de 2016

Sobre as lições da vida...

Garota desbocada é um espaço visualmente tosco, ideologicamente irreverente, em que posto artigos politicamente incorretos sobre as minhas insatisfações e inquietações. Se quiser rir e praguejar comigo, entre e fique à vontade RS

Acho que aprendi algumas lições com a vida...a primeira delas é que realmente não aprendemos grandes coisas. 

A maturidade e uma boa terapia nos fazem rever valores , conceitos. Nos fazem disfarçar defeitos e a aceitar a vida com menos desespero. Enfim, nos fornecem estratégias de sobrevivência. Mas cada um é o que é. E como diria Caetano Veloso, na música "O dom de iludir", "cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é".

Aprendi também que a gente pode mentir para a gente mesmo lindamente bem, sem se dar a menor conta por um bom tempo.

Aprendi que toda felicidade construída sobre o coração partido de outra pessoa é uma felicidade menor. 

Aprendi que devemos ser sinceros até certo ponto. Certas verdades nunca devem ser pronunciadas pois nada agregam. Só servem para ferir o outro.

Aprendi que não existe relação alguma entre ser uma boa pessoa e ser feliz. Mas, por outro lado, existe uma grande relação entre ser uma boa pessoa e alguém em paz.

Aprendi que as piores coisas da vida são felicidade fake e remorso.

Aprendi que se a gente quer ser querido e valorizado pelas pessoas, a gente deve valorizar as pessoas e colocá-las no centro.  Tirando amor de mãe, não existe amor incondicional. Sim, é triste. Mas toda relação é uma troca.  Quer ser elogiado, elogie. Quer ser acarinhado, acarinhe. Quer ser o favorito de alguém, torne alguém o seu favorito.

Aprendi que tentar disfarçar ou sublimar sentimentos só o tornam maiores. Aprendi que fazer o jogo do contente não funciona para mim. Preciso sorver minha dor até a borra , entregando-me totalmente a ela para finalmente vencê-la.

Aprendi que usar uma pessoa para esquecer outra é a maior sacanagem.  Além de ser uma grande perda de tempo.

Aprendi que o tempo não cura tudo não. Como diria uma personagem do filme "A excêntrica família de Antonia" , ele apenas embaça a visão. Mas tudo bem. No problems. No stress. Viver é acumular traumas e cicatrizes e mesmo assim seguir em frente.

Aprendi que às vezes é preciso virar a mesa para viver grandes momentos.  As melhores conquistas exigem que paguemos uma fatura alta. Não existe grande felicidade sem um preço a se pagar.  A vida é implacável com os autênticos e destemidos.

Aprendi que os nossos maiores encantos , muitas vezes,  atrapalham a nossa vida.  Aprendi que as pessoas amam , querem, temem  e repelem simultaneamente aqueles que brilham.  Aprendi que conviver de boa com o mérito dos outros é a nossa maior virtude.
 
Aprendi que a grande força de um homem não se encontra em sua capacidade de acumular poder, mas sim, em sua capacidade de aceitar o poder que vem da sua mulher.  Apenas um homem essencialmente poderoso pode aceitar uma mulher que ele seja capaz de admirar e não apenas desejar.
 
 


Sílvia Marques é escritora, professora doutora e escreve regularmente na Obvious.  Viciada em café, chocolate, vinho barato, dias nublados, filmes bizarros e pessoas profundas.